segunda-feira, 16 de outubro de 2017

FÁBULAS DE PILPAY

Adaptação: Romeo Zanchett
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Pilpay é o suposto autor duma coleção de fábulas, chamadas FÁBULAS DE PILPAY, que teve origem numa antiga coleção índica, escrita em sânscrito e intitulada PANCHATANTRA. Primeiro foi traduzida para pahlavi cerca do ano 550 e subsequentemente transmitida através do árabe a todos os povos da Europa. Encontram-se versões em malaio, mongol e afghen.

O CORVO, O RATO E OS POMBOS
                 Perto de Odorna havia em tempos um sítio delicioso, que por ser habitado por muitas aves era muito frequentado pelos caçadores. Um corvo viu por acaso um dia neste lugar, no pé da árvore onde tinha feito o seu ninho, certo caçador com uma rede na mão. O pobre corvo a princípio assustou-se, julgando que era a ele que o caçador queria apanhar; mas o seu receio desvaneceu-se quando viu os movimentos do homem, que, depois de ter estendido a rede no chão, e de ter espalhado alguns grãos de trigo para atrair as aves, foi esconder-se por detrás de uma sebe. Mal se tinha deitado no chão quando veio um bando de pombos que se atirou ao trigo sem atender ao seu chefe que bem quis evitar isso, dizendo-lhes que não se deviam entregar assim aos seus impulsos. Este chefe prudente, que era um velho pombo chamado Montivaga, vendo que eles eram teimosos, muitas vezes se quis separar deles; mas o destino, que impiedosamente domina todos os entes vivos, obrigou-o a seguir a sorte dos outros, de modo que pousou no chão com os seus companheiros. Pouco tardou que se vissem debaixo da rede e a cair nas mãos do caçador. 
                 Então disse-lhes Montivaga com tristeza, que é que pensais agora? acreditar-me-eis para a outra vez que eu vos avise, se escaparmos desta? Bem vejo, continuou, reparando como eles se debatiam para escapar, que cada um de vós só se importa consigo, não cuidando dos seus companheiros; e deixai que vos diga que este modo de proceder é não só ingrato, mas também estúpido; devemos cuidar em nos ajudar uns aos outros, e pode ser que uma ação tão caritativa nos salve a todos; tentemos todos romper a rede. 
                 Todos obedeceram a Montivaga, e tão bem trabalharam que arrancaram a rede do chão e a levaram consigo para o ar. O caçador, vendo isto, e zangado por perder tão boa presa, seguiu os pombos, na esperança de que o peso da rede os cansasse. No entanto, o corvo, observando tudo, disse consigo: -"Esta aventura é muito interessante; não quero deixar de ver como acaba"; e portanto, levantou voo e segui-os. 
                    Montivaga, vendo que o caçador estava resolvido a persegui-los, disse aos companheiros: 
                 - Este homem não deixará de nos perseguir senão quando nos perder de vista; portanto, para isto não acabar mal, vamos nos dirigir para um bosque denso ou um castelo abandonado, para que, quando nos oculte alguma floresta ou muro, o desânimo o obrigue a retirar-se. 
                 O plano surtiu o efeito desejado, pois que, tendo-se escondido entre os ramos de uma densa floresta, onde o caçador os perdeu de vista, este voltou para casa muito desgostoso com a perda da caça e da rede. 
                  Quanto ao corvo, continuou a segui-los, tendo a curiosidade de ver como se escapariam da rede, para no futuro poder por em prática o mesmo processo se necessário fosse. 
               Os pombos, vendo-se assim livres do caçador, ficaram muito felizes; a rede, porém, ainda os atrapalhava, mas Montivaga, que era criativo em invenções, não tardou a achar o remédio certo e disse: 
               - Devemos nos dirigir a um amigo sincero, que, fora de toda a traição e segundo proposito, trate fielmente de nos livrar. Conheço um rato que vive perto daqui, fiel amigo meu, cujo nome é Zirac; tenho certeza de que ele roerá a rede para nos por em liberdade. 
                   Os pombos, que não pretendiam outra coisa, todos concordaram em voar até à casa desse amigo; e pouco depois chegaram à toca do rato, que apareceu ao ouvir o rufar das asas, e disse, admirado e surpreendido por ver Montivaga preso na rede; 
                 - Ó meu caro amigo! como te aconteceu isto?
                Montivaga respondeu-lhe: 
                - Fomos pegos de surpresa; peço-te, meu amigo fiel, que soltes primeiro os meus companheiros. Mas Zirac, mais aflito por ver seu amigo preso do que por todos os outros, queria libertá-lo primeiro; mas Montivaga exclamou: 
                      - Peço-te mais uma vez, em nome de nossa velha amizade, que soltes todos os meus companheiros antes de mim; porque, além de se dar o fato de eu como seu chefe ter de cuidar primeiro deles, receio que o trabalho que tiveres para me soltar te canse e tire o vigor para soltar os outros; ao passo que a amizade que me tens te animará para os soltar depressa, para que mais depressa me possas soltar.
              O rato admirando a solidez destes raciocínios aplaudiu a generosidade de Montivaga, e pôs-se a soltar os outros; e, feito isso, o que levou pouco tempo, pôs em liberdade o seu velho amigo. 
                Montivaga, uma vez livre, despediu-se, assim como os companheiros, de Zirac, agradecendo-lhe mil vezes a sua generosidade. E quando se tinham ido, o rato voltou para sua toca.
                O corvo, tendo observado tudo isto, teve grande vontade de conhecer Zirac. Para esse fim dirigiu-se à toca e chamou-o pelo seu nome. Zirac, assustado por ouvir uma voz estranha, perguntou quem era; ao que o corvo respondeu: 
                     - É um corvo que tem um assunto importante a tratar convosco. 
                  - Que assunto, responde o rato, podemos nós ter a tratar? Somos inimigos. 
                 Então o corvo disse-lhe que desejava pertencer ao número de amigos de um rato, que via ser tão sincero na sua amizade. 
              - Peço-vos, respondeu Zirac, que busqueis qualquer outra criatura cuja amizade melhor se case com a vossa disposição. Perdeis o vosso tempo querendo persuadir-me a chegar a uma reconciliação tão pouco natural. Somos incompatíveis. 
            - Não me faleis de incompatibilidades, disse o corvo, mas fazei uma ação generosa dando a vossa amizade a uma criatura inocente que vos pede com toda a educação. 
              - Podeis falar-me em generosidade até que vos estourem os bofes, respondeu Zirac; conheço-vos muito bem as manhas; em suma, somos criaturas de espécies tão diferentes que nunca poderemos ser amigos. O exemplo que me ocorre da perdiz, que impiedosamente deu a sua amizade a um falcão, é bastante para me fazer prudente.
                  Não acrediteis, continuou  o rato, que, fiado nas vossas promessas, me porei à vossa mercê. 
                 - Ponderai, respondeu o corvo, que não me vale a pena enganar a minha fome com um corpo tão pequenino como o vosso; não é portanto com esse fim que vos falo, mas sei que a vossa amizade me pode ser útil; não tenhais dúvida, portanto, em me conceder esse favor. 
                 - Os sábios antigos, respondeu o rato, aconselham-nos a que não nos deixemos enganar pelas boas palavras dos nossos inimigos, como aconteceu a um homem infeliz, cuja história, querendo vós, vos contarei. 

Lição 
É preciso ter muito cuidado ao dar amizade a um desconhecido.
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A PERDIZ E O FALCÃO
                   Uma perdiz, disse Zirac, conservando-se na toca, mas continuando amavelmente o seu discurso, passeava no sopé dum monte e canta, no seu modo tosco, tão agradavelmente, que um falcão ao passar por acaso naquele lugar, das alturas de seu voo conseguiu ouvir sua voz; decidiu posar perto dela para tentar uma aproximação e delicadamente travar conhecimento almejando uma possível amizade. 
                 - Ninguém, disse ele para si mesmo, pode viver sem um amigo; e dizem os sábios que aqueles que não tem amigos estão como que numa doença perpétua. 
                  Pensando assim ia dirigir-se à perdiz; mas ela, vendo-o tão próximo, escondeu-se numa cova, tremendo de terror. 
              O falcão seguiu-a, e chegando à entrada da cova, disse: 
              - Cara perdiz, confesso que até agora não tenho me mostrado amável para convosco, visto que não vos conhecia os predicados; mas pois que a minha boa sorte me fez conhecer o vosso canto, dignai-vos deixar-me falar convosco, para que vos ofereça a minha amizade e vos peça que me deis a vossa. 
                - Tirano, respondeu a perdiz, deixai-me em paz e não tenteis inutilmente reconciliar o fogo e a água! 
                 Mas o falcão não desistiu de seu objetivo e disse: 
                 - Amabilíssima perdiz, por favor afastai esses medos inúteis e injustificáveis, e convencei-vos de que vos estimo e desejo apenas que possamos nos conhecer melhor; tivesse eu outro propósito, não me demoraria aqui na entrada de vossa cova a pedir-vos tão amigavelmente para sairdes e vir conversar comigo aqui fora. Acreditai-me, possuo tão boas garras que tinha tempo para apanhar uma duzia de perdizes enquanto tenho estado a falar-vos. Estou certo que tereis bastantes razões para vos felicitar pela minha amizade; primeiro, porque nenhum outro falcão vos fará mal enquanto estiverdes sob a minha proteção; em segundo lugar, porque estando no meu ninho sereis respeitada por todos; e, finalmente, arranjar-vos-ei um macho para ser seu fiel companheiro e dar-vos as delícias do amor e da maternidade.
           - Custa-me crer que possais ser tão amável para comigo, respondeu a perdiz. Mas, mesmo se isso for dito a sério não devo aceitar a vossa proposta; porque sendo vos o príncipe das aves, e grande a vossa força, e eu apenas uma fraca perdiz, quando eu fizer qualquer coisa que vos desagrade, não deixareis de me matar! 
                - Não, não, de forma alguma, disse o falcão, não vos assusteis; as culpas dos amigos depressa se perdoam!
               Conversaram ainda mais neste sentido, e muitas objeções foram levantadas e respondidas satisfatoriamente, de modo que por fim o falcão mostrava-se tão sincero em sua vontade de ser amigo da perdiz que ela não pode recusar e saiu da cova para melhor conversar. E mal tinha saído, abraçou-a o falcão ternamente e levou-a para o seu ninho, onde durante dois ou três dias não fez senão tratar de a divertir. A perdiz, contentíssima por ser assim tratada, deu à língua mais liberdade do que antes tinha dado, e começou a falar muito da crueldade e selvageria das aves de rapina. Isto começou a ofender o falcão, conquanto de momento o disfarçasse. Um dia, porém, ele infelizmente adoeceu, o que o impediu de sair à cata de presas, de modo que começou a sentir fome; e faltando-lhe o que comer, não tardou que se tornasse melancólico, tristonho, e aborrecido. Este mau humor não tardou a assustar a perdiz, que, com muita prudência e um especto humilde, se refugiou num cantinho separado. Mas o falcão, pouco depois, não podendo mais suportar as exigências do seu estômago, resolveu arranjar uma discussão com a pobre perdiz. Por isso lhe disse: 
              - Não é justo que estejas ai à sombra quando todo o mundo está exposto ao calor do sol.
                 A perdiz, tremendo, respondeu:
              - Rei das aves, agora já é noite, e todo o mundo está na sombra assim como eu, nem sei de que sol falas.
                - Insolente! gritou o falcão, queres então dizer ou que eu sou mentiroso ou que sou doido? e dizendo isto,atirou-se a ela e matou-a na hora. 
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O HOMEM E A SERPENTE 
                   Um homem montado num camelo penetrou num bosque em certa ocasião; e foi descansar num ponto onde uma caravana havia estado e onde as fagulhas de fogueira que haviam acendido tinha incendiado uma moita onde estava uma serpente já cercada pelas chamas. O fogo a tal ponto envolvera a serpente que ela não sabia como fugir e já se dispunha a aceitar a morte, quando viu o homem e com mil palavra comovedoras lhe pediu que lhe salvasse a vida.  O homem, sendo de sua natureza bondoso, disse para consigo: "É certo que estas criaturas são inimigas da humanidade; as boas ações, porém, são de grande valor, do maior mesmo, quando feitas aos nossos inimigos; e quem semeia boas ações, colhe bons resultados." Feitas estas reflexões, o homem pegou num saco e atando-o à ponta da sua lança, estendeu-o à serpente por cima das chamas; a serpente atirou-se para dento do saco, e o homem, tendo-a salvo, disse-lhe que podia seguir  sua vida, esperando, porém, que ela tivesse gratidão bastante para lhe prometer que nunca mais faria mal aos homens, visto que um homem lhe tinha sido útil. 
                    A isto respondeu a criatura desagradecida: 
           -Enganas-te quanto a ti e quanto a mim; não penses que tensiono retirar-me mansamente; pelo contrário, o meu propósito e, primeiro agradecer-te, e depois inocular o meu veneno em ti e no teu camelo. 
                    - Monstro de ingratidão! respondeu o viajante, para ao menos um momento e dize-me se é legítimo pagar o bem com o mal. 
                    - Não, responde a serpente, legítimo não é; mas agindo desse modo farei senão o que vós fazeis a todos dias; isto é, pagar boas ações com ações más, e benefícios com ingratidão. 
                   - Não pode provar essa afirmação caluniosa, respondeu o viajante; direi mesmo que, se me puderes provar que qualquer outra criatura no mundo que seja da tua opinião, consentirei em aceitar o castigo que achares próprio infligir-me pelas culpas dos meus semelhantes homens.
                   - De boa vontade acedo a esse pedido, respondeu a serpente; e ao mesmo tempo vendo uma vaca, disse: 
                  Façamos a nossa pergunta a esta criatura que aqui está, e vejamos a resposta que ela nos dirá. 
                  O homem concordou; de modo que dirigindo-se ambos para a vaca, a serpente perguntou-lhe com é que uma boa ação se devia recompensar.
                     - Pelo seu contrário, respondeu a vaca, se vos referis ao costume dos homens; e isto eu sei por triste experiência própria. Pertenço a um homem a quem de vários modos tenho sido útil; todos os anos lhe tenho dado um vitelo, e constantemente lhe tenho fornecido leite, manteiga e queijo; mas agora que estou velha e que já não posso lhe ser útil como era, ele pôs-me a pastar para que engorde, tencionando vender-me para um açougueiro que irá me matar para vender minha carne a seus clientes; ora não se chama isto pagar o bem com o mal? 
                 Depois disto a serpente, tomando a palavra, disse ao homem: 
                 - O que dizes agora? não é seguir o vosso costume o tratar-te eu como tenciono tratar? 
                 O viajante, bastante atrapalhado por esta história pouco azada, teve, porém, a esperteza suficiente para responder: 
                  - Isto é apenas um caso isolado, e, deixai que vos diga, uma testemunha não é bastante para me condenar; vamos portanto a outra. 
                  Com todo o gosto, respondeu a serpente; interroguemos esta árvore que aqui está. 
                  A árvore, inteirada do assunto da discussão, deu o seu parecer nas palavras seguintes: 
                  Entre os homens as boas ações são sempre pagas com más ações. Eu protejo os viajantes do calor do sol, dou-lhes fruta para comer e um líquido delicioso para beber; e, contudo, esquecendo o prazer e a utilidade da minha sombra, eles cortam-me barbaramente os ramos para fazer o cabos para machados, e serram o meu corpo para fazer tábuas e traves. Não e isto pagar o bem com o mal? 
                 A serpente então perguntou ao viajante se ele já se dava por satisfeito. Ele, porém, estava a tal ponto confuso que não sabia o que responder. Ainda assim, esperando escapar ao perigo que o ameaçava, disse à serpente: 
           - Peço mais um favor; é apenas que eu seja julgado pelo primeiro animal que encontrarmos; faze-me esse favor, que é o único que te peço. Bem sabes que a vida é grata; deixa, portanto, que eu possa ter o meio de não a perder. 
                 Nisto passou uma raposa, a quem a serpente deteve, pedindo-lhe para pôr termo à discussão. 
                   A raposa pediu então que lhe dissessem o assunto que se discutia, ao que o viajante respondeu: 
                - Prestei a esta serpente um grande serviço,  e ela quer persuadir-me que em troca disto me deve fazer mal. 
                   - Se ela quer proceder para convosco como vós procedeis para com os outros, não pede nada de extraordinário, respondeu a raposa; mas para que eu cabalmente possa servir de juiz, dizei-me qual o serviço que lhe fizestes. 
                O viajante estimou ter esta oportunidade de expor a questão, e contou-lhe como tudo se passara; disse-lhe como tinha salvo a serpente das chamas com o saco pequeno que mostrou. 
                 - O que! disse a raposa com uma gargalhada; queres então que eu acredite que uma serpente tão grande coube em saco tão pequeno? É impossível. 
                  Tanto o homem como a serpente lhe afirmaram que assim fora; mas a raposa não quis acreditar. Por fim, disse: 
                    - Não há palavras que me possam convencer de que coisa tão improvável se houvesse dado; mas se a serpente se meter outra vez no saco, eu sem dúvida ficarei convencido do que ambos afirmais, poderei então dar a minha opinião sobre vossa disputa. 
                 - Com muito gosto, respondeu a serpente, e meteu-se dentro do  saco. 
                 Então a raposa disse ao viajante: 
                 - Agora tens em teu poder a vida do teu inimigo; e parece-me que não te custará muito decidir o que deves fazer a um tal monstro de ingratidão. 
                O viajante então, atando a boca do saco, fartou-se de malhar na serpente com uma grande pedra, e só deixou de o fazer quando a tinha de todo esmigalhado; e desse modo pôs fim ao mesmo tempo aos seus receios e à discussão. 
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LIÇÃO: Esta fábula ensina-nos que não devemos confiar nas boas palavras dum inimigo, para que o mesmo não nos aconteça. 
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AS AVENTURAS DE ZIRAC 
                 Nasci, disse Zirac, e vivi durante muito tempo na cidade da Índia chamada Marout, onde escolhi uma morada que parecia a própria habitação, para ali poder viver em sossego. Aí gozei durante muito tempo a maior felicidade da terra, e provei a suavidade de uma vida sossegada na companhia de outros ratos, boa gente e do meu gênio. Havia também na vizinhança um certo Derviche, que todos os dias ficava indolentemente em casa enquanto o seu companheiro ia pedir esmola. Nunca deixava, porém, de comer parte do que o outro trazia para casa, e de guardar o resto para a sua ceia. Mas quando se sentava a esta refeição, nunca achava a comida como a tinha deixado; porque enquanto ele passeava no jardim enchia eu a barriga, e sempre chamava os meus companheiros para comer juntos comigo. Mas o Derviche, encontrando sempre menos comida do que tinha guardado, acabou por se zangar muito, e procurou nos seus livros uma receita ou estratagema para nos apanhar; mas não lhe serviu de nada, porque eu era mais esperto do que ele. Um dia infeliz, porém, um dos seus amigos que voltava duma longa viagem, veio à sua casa fazer-lhe uma visita; e depois de terem jantado, puseram-se a discutir viagens. O viajante começou a contar o que de mais notável tinha visto; mas, enquanto se esforçava por lhe descrever os mais encantadores lugares por onde tinha passado, o Derviche interrompia-o de vez em quando com o barulho que fazia batendo as palmas e batendo o pé no chão para nos afugentar; porque, na verdade, nós várias vezes lhe atacamos a comida sem nos importarmos com ele ou com a sua visita. Por fim o viajante, jangando-se por Derviche lhe estar prestando tão pouca atenção, disse-lhe redondamente que fazia mal em o deter ali a incomodá-lo com narrativas a que ele não dava atenção nenhuma, fazendo pouco dele. 
              - Deus me livre, respondeu surpreso o Derviche, de estar prestando pouca atenção a uma pessoa do vosso valor; peço-vos desculpa de vos ter interrompido, mas há aqui um ninho de ratos que não me hão-de-deixar senão quando me tiverem comido a mim; e um deles é tão atrevido que me vem roer os dedos dos pés quando eu estou a dormir, e nãosei como apanhar o diabo do traiçoeiro. 
                   O viajante deu-se por satisfeito com as desculpas do Derviche e respondeu: 
                  -Há aqui com certeza um mistério; isto faz-me lembrar uma história notável que vos contarei se me quiserdes prestar mais atenção.
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MARIDO E MULHER 
                  Um dia, continuou o viajante, indo eu de jornada obrigou-me o mau tempo a parar numa cidade onde tinha conhecimentos em várias classes sociais; e não podendo prosseguir na minha viagem por causa da chuva que caia torrencialmente, hospedei-me em casa de uma amigo meu, que me recebeu com grande amabilidade. Depois da ceia deu-me para dormir um quarto que era separado do seu apenas por uma divisória finíssima; de modo que, sem querer, ouvi a conversa particular entre ele e sua mulher: 
                 - Amanhã, dizia ele, tensiono convidar os principais habitantes da cidade para uma festa dedicada ao meu amigo que me deu a honra da sua visita. 
                 - Tu não tens condições suficiente para sustentar a tua família, respondia a mulher, e está a falar em dar festas; antes pensassem em poupar o pouco que tens para o bem dos teus filhos, e te deixasses de festas. 
                 - Mas este é um homem de grande religião e santidade, respondia o marido, e cumpre-me mostrar o quanto me agrada vê-lo, assim como dar aos meus outros amigos o ensejo de lhe apreciarem a piedosa conversação; e não te deves ralar por causa da despesa, que isto pouco custará. A providência divina é grande, e não devemos pensar demais no dia de amanhã, para que não nos aconteça o que aconteceu ao Lobo.  
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O CAÇADOR E O LOBO
                Um dia, continuou o marido, um grande caçador voltando da caça ao veado, viu inesperadamente um javardo sair dum bosque e dirigiu-se para ele. Belo!, disse o caçador, este animal chega muito a propósito; aumentará bem a minha provisão. Dizendo isso, atirou-lhe uma seta tão certeira que o feriu mortalmente. Porém, às vezes, surgem acontecimentos inesperados que precisam de um cuidado excessivo das necessidades da vida, que este auspicioso princípio foi apenas o prelúdio de uma catástrofe fatal. Porque o animal sentido-se ferido, com tal fúria se atirou contra o caçador, que lhe abriu o ventre com os colmilhos, de modo que ambos morreram. 
                  No momento que isto acontecia passava por ali um lobo faminto que teve uma grande alegria ao ver no chão tanta comida disponível. Ainda assim, disse ele consigo mesmo, não devo estragar esta boa comida; mas cumpre-me aproveitar a minha sorte, para que isto me dure mais tempo. Estando, porém, com muita fome, resolveu prudentemente começar por encher bem a barriga e só depois guardar o restante para os dias seguintes. Porém, ão querendo perder nenhum bocadinho do seu achado, resolveu encetar pelo  que era mais grosseiro e por isso começou a trintar a corda do arco que era feita de tripa; mas mal cortou a corda com os dentes, o arco, que estava muito dobrado, deu-lhe tal pancada na cabeça que el caiu morto por cima dos outros cadáveres. 
                -  Esta fábula, disse o marido, ensina-nos que não devemos ser mesquinhos em excesso. 
                   - Bem, disse-lhe a mulher, se é esse o resultado da economia, pode convidar quem quiseres. 

                Resolvido o impasse, o marido convidou muita gente para a festa; mas no dia seguinte, estando a mulher a preparar o jantar e a fazer uma espécie de molho com mel, viu um tato cair na vasilha do mel, o que a agoniou e a fez abandonar aquela parte dos preparativos. Não querendo portanto fazer uso do mel, levou-o para o mercado e ali o trocou por alcatrão. Eu estava por acaso ao pé dela nesse momento e perguntei-lhe porque tinha feito uma toca tão desvantajosa.
                 - É, segredou-lhe ela, porque para mim não vale tanto como o alcatrão. 
                Então comecei a perceber que havia qualquer mistério no caso, que estava além da minha compreensão. O mesmo acontece com este rato; ele seria tão atrevido se não tivesse para isso uma razão qualquer que nós não conhecemos. 
                  - Os ratos, continuou ele , nesta parte do mundo, são uma raça manhosa, cobiçosa e orgulhosa; juntam dinheiro exatamente como os avarentos da humanidade; e quando um deles possui uma soma considerável, torna-se um príncipe, e tem um certo número de camaradas, que estão prontos a morrer por ele, assim como por ele vivem, porque ele paga as despesas de comida, etc., que fazem, e eles vivem como escravos em absoluta indolência. Quero crer que tal seja o caso desse rato atrevido; que ele tem muitos escravos da sua raça para o defender e ajudar nos seus projetos audaciosos, e que há dinheiro escondido na sua toca. 
                  O Derviche, mal ouviu o viajante falar em dinheiro, pegou um machado e trabalhou tão bem que, tendo aberto a parede, não tardou a descobrir o meu tesouro, que era de uns mil dinheiros em ouro, que eu tinha juntado com muito trabalho. Ha muito tempo que eles constituíam todo o meu prazer; todos os dias eu os contava; gostava de lhes mexer e de deixar cair em cima deles, pondo nisso toda a minha felicidade. Mas voltemos à história. Quando o ouro caiu para fora, o viajante exclamou:
                  - Ora, não tinha eu razão em atribuir a insolência destes ratos a uma causa desconhecida? 
                "Deixo à vossa imaginação a calcular o estado de atrapalhação em que fiquei ao ver os meus domínios saqueados deste modo. Resolvi mudar de casa; mas os meus companheiros abandonaram-me; de modo que verifiquei a verdade do provérbio, falta de amigos!"
                 Os amigos hoje em dia, deixam de nos estimar quando a nossa amizade já lhes não pode ser útil. Ouvi dizer entre os homens que uma vez perguntaram a um sujeito rico e espirituoso quantos amigos tinha. Quanto a amigos à moda de hoje, disse ele, tenho tantos quanto tenho de coroas; mas quanto a verdadeiros amigos, tenho primeiro que empobrecer para saber quantos tenho
                  Estava eu meditando no desastre que me tinha acontecido, quando vi passar um rato que antigamente se me confessava absolutamente dedicado, a tal ponto que diríeis que não podia viver longe de mim. Chamei-o, e perguntei-lhe porque me abandonava como os outros. 
                  - Então julgas, respondeu o ingrato, que somos tão tolos que te sirvamos de graça? Quando eras rico fomos teus criados; mas agora que estás pobre podes ter certeza de que não seremos os companheiros da tua pobreza.
                - Mas tu não deves desprezar os pobres, disse-lhe eu, porque eles são os amados da Providência Divina. 
                   - Isso é verdade, respondeu ele; mas não os pobres da tua espécie. Porque a Providência olha por aqueles que por causa da religião abandonaram o mundo; não por aqueles que o mundo abandonou!
                   Apesar de descontente comigo mesmo pela minha antiga generosidade para com tal vilão, não soube o que responder a uma observação tão cortante. Apesar da desgraça continuarei em casa do Derviche, para ver o que ele fazia do dinheiro que me tinha tirado; e vi que tinha dado metade ao amigo, e que cada um deles dormia com o dinheiro debaixo do travesseiro. Ao ver isto, lembrei-me logo de tentar reaver o meu tesouro. Com esse fim fui devagar até à cabeceira do Derviche e dispunha-me a retirar o dinheiro; mas infelizmente o seu amigo viajante que, sem eu o perceber, me tinha estado a observar os movimentos, atirou-me com o bordão com tão boa vontade que por pouco me não partiu a perna, o que me obrigou a voltar para a toca o mais depressa possível; e, ainda assim, não o fizessem dificuldade. Cerca de uma hora depois, tornei a sair, julgando que desta vez o viajante também estivesse a dormir. Mas ele era boa sentinela e não estava para correr o risco de perder a fortuna. Fiz-me, porem, valente e avancei, e já estava outra vez à cabeceira do Derviche quando a minha ousadia por pouco não me custou a vida. Porque o viajante deu-me outra pancada, e desta vez na cabeça,  que me atordoou a tal ponto que mal pude achar a toca. Nesta mesma ocasião me tornou ele a atirar com o bordão; mas, como não me acertou, consegui escapar; e, uma vez salvo, jurei nunca mais tentar reaver uma coisa que tanto trabalho e riscos me tinha custado. Seguindo este propósito, abandonei a casa do Derviche e retirei-me para aquele lugar onde me vistes com o pombo. 
                    A narração das aventuras do rato agradou extremamente à tartaruga, a qual abraçando-o, lhe disse: 
                 - Fizestes bem em abandonar o mundo e as suas intrigas, visto que não nos dão uma alegria perfeita. Todos aqueles que são perturbados pela avareza e pela ambição, não fazem senão preparar a sua ruína, como certo gato que ha tempos conheci, cujas aventuras, vos vou narrar, crente de que vos não desagradará ouvi-las.
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O GATO GLUTÃO
             - Certa pessoa que muitas vezes tenho visto, continuou a tartaruga, tinha em casa um gato que tratava muito frugalmente. Dava-lhe de comer, o suficiente para o sustento, mas nada mais; e o gato podia, se quisesse, ter ali vivido com muita felicidade; mas era muito glutão e, não se contendo com a comida de costume, andava sempre pelos cantos à procura de mais. Um dia, passando por um pombal, viu uns filhotes de pombos; e ficou com água na boca por aqueles petiscos. Por isso subiu até o pombal, e sem se importar que o dono do pombal ali estivesse, preparou-se para satisfazer os seus desejos. Mas o dono, mal viu o glutão do gato entrar, fechou todas as portas e tapou todos os buracos por onde ele pudesse escapar; depois tanto o procurou que o apanhou e acabou por enforcá-lo num canto do pombal. Pouco depois, passou o dono do gato, e, vendo-o pendurado naquela forca disse: 
                 - Infeliz glutão, tivesses tu te contentado com o bastante que te dava, e agora não estaria nessa situação! É assim, continuou ele moralizando, que os glutões insaciáveis fazem a sua própria desgraça. Ai! as felicidades do mundo são incertas e pouco duram. Os sábios, bem me lembro, dizem que não nos podemos ficar em seis coisas, nem delas há que esperar que sejam constantes; 
                 1° - Uma nuvem; porque num instante se desfaz;
                 2° - A amizade fingida; porque passa como um relâmpago.
                 3° - O amor de uma mulher; porque muda com cada capricho.
                 4° - A beleza; porque a destrói a menor injúria do tempo, da desgraça, ou da doença; 
                 5° - As orações falsas; porque não são mais que fumo;
                 6° - E os prazeres do mundo; porque se esvaem num momento.
              -   As criaturas de juízo, respondeu o rato, são todas dessa opinião; nunca tentam obter essas coisas vãs; não há nada a não ser a aquisição de um verdadeiro amigo que nos possa levar a esperar uma felicidade duradoura. 
                  Falou então o corvo, por sua vez: não há prazer ou vantagem terrena, disse como um verdadeiro amigo; o que tentei provar contando-vos a história seguinte. 
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O DOIS AMIGOS 
                Um certo sujeito, nobre e generoso por natureza, ouviu uma vez estando já na cama, alguém bau-lhe à porta fora de hora. Um tanto surpreso, perguntou, sem se levantar, quem estava ali. Mas quando pela voz percebeu que era um dos seus melhores amigos, levantou-se imediatamente, vestiu-se e, mandando o criado acender uma vela, foi abrir a porta.
                   Logo que o viu disse: 
                   - Caro amigo, sempre me é grato ver-te, mas neste momento é-me duplamente grato, porque estou certo, pela ocasião extraordinária desta visita, de que em alguma coisa te poderei servir. Não posso imaginar que virias a esta hora se não fosse para me pedir dinheiro emprestado, ou para te acompanhar ao campo, e é-me agradável poder-te assegurar que em qualquer das coisas te poderei servir. Se precisas de dinheiro, a minha bolsa está cheia, e para ti sempre aberta. Se vais ter um encontro com um inimigo, o meu braço e a minha espada estão ao teu dispor. 
                  - Não há nada de que menos precisa, respondeu o amigo, do que dessas coisas que me ofereces. Vim apenas saber da tua saúde temendo não fosse certo um sonho mau que tive. 
                Estando o corvo a contar esta fábula viram os amigos à distância uma cabrinha brava correndo com grande velocidade para o ponto onde eles estavam.
                  Tiveram todos por certo, pela rapidez com que vinha, que a perseguia um caçador; e imediatamente e sem cerimônia se separaram, tratando cada um de ser  por a salvo. A tartaruga meteu-se por água dentro, o rato fugiu para um buraco que por acaso ali encontrou, e o corvo escondeu-se entre os ramos de uma árvore muito alta. No entanto a cabrinha parava de repente e descansava à beira da água; o corvo, depois de olhar para um lado e para o outro sem ver ninguém, chamou pela tartaruga, que imediatamente por a cabeça fora da água; e vendo que a cabrinha estava com medo de beber. 
                  - Bebe sem receio, disse, porque a água é muito boa; e tendo a cabrinha bebido: dize-me, exclamou a tartaruga, a razão porque pareces estar tão assustada?  
                   - Razão, e forte, respondeu a cabrinha, porque acabo de escapar das mãos de um caçador que me perseguiu muito perto. 
                   - Vamos, disse a tartaruga, é-me grato ver que estás salva, e tenho uma proposta a fazer-te; se te agradar a nossa companhia, fica aqui conosco gozando a nossa amizade; acharás, eu te asseguro, que os nossos corações são honestos e o nosso trato agradável. Dizem os sábios que o número do amigos minora os infortúnios; e que se um homem tivesse mil amigos os devia considerar como não mais do que um; mas, pelo contrário, se tiver um só inimigo, o deve contar como se fossem mil, tão perigoso e funesto é ter um inimigo. 
                    Findo este discurso, o corvo e o rato vieram ter com a cabrinha, fazendo-lhe mil amabilidades; o que tanto lhe agradou que ela prometeu nunca mais sair dali na sua vida. 
                  Os quatro amigos, depois disto, viveram em perfeita harmonia durante muito tempo e passaram a vida juntos muito agradavelmente. Mas um dia,encontrando-se a tartaruga, o rato, e o corvo, como de costume, ao pé da água, deram pela ausência da cabrinha, o que muito os perturbou, visto que não podiam imaginar o que lhe teria acontecido. Dentro em pouco tempo resolveram procurá-la e prestar-lhe auxílio: imediatamente o corvo subiu ao ar e, olhando em torno de si, viu por fim, à distância, a pobre cabrinha presa na rede de um caçador. O corvo desceu logo, e comunicou o que tinha visto ao rato e à tartaruga; e bem se pode imaginar a angustia em que ficaram os três amigos. 
                 - Ha muito tempo que somos amigos e temos vivido felizes com a nossa amizade, disse a tartaruga; e seria vergonhoso agora faltar a ela e deixar perecer a nossa inocente e bondosa amiga; não, temos de achar uma maneira de livrar a pobre cabrinha.
                - Então, disse o corvo ao rato, lembra-te agora, excelente Zirac, da tua habilidade, e usa-a para o bem comum; não há senão tu para poder soltar a nossa amiga, e tem de ser depressa, antes que o caçador lhe ponha as mãos em cima. 
                  - Não duvides, da minha boa vontade, respondeu o rato, vamos pois, imediatamente, para que não se perca tempo. 
                  O corvo então levou Zirac no bico até o lugar onde estava a cabrinha, e uma vez ali chegado, pôs-se logo o rato a roer as malhas que prendiam os pés dela, e tinha quase acabado quando apareceu a tartaruga. A cabrinha, viu a sua vagarosa amiga, exclamou:
                 - Porque te arriscaste a vir até aqui? 
                 - É que, respondeu a tartaruga, já não podia suportar a vossa ausência. 
                 - Cara amiga, disse a cabrinha, a tua vinda aqui preocupa-me mais do que a perda da minha própria liberdade; pois se por acaso o caçador aparecer agora, que farás para lhe escapar? Por mim, estou quase solta, e a minha velocidade evitará que eu lhe caia nas mãos; o corvo está seguro ´porque voa; o rato esconde-se em qualquer buraco; só tu, que és vagarosa, serás decerto apanhada pelo caçador. 
                 Mal tinha a cabrinha dito estas palavras, apareceu o caçador, mas a cabrinha que já estava solta, fugiu; o corvo levantou voo; o rato escondeu-se num buraco; e, como dissera a cabrinha, só a tartaruga vagarosa ficou sem poder escapar. 
                 Quando o caçador chegou, não foi pequena a surpresa quando viu a rede toda cortada. Isto foi para ele, não pequena arrelia, e ficou procurando descobrir cuidadosamente quem tinha feito aquilo; e infelizmente, na sua pesquisa encontrou a tartaruga. 
                 - Ora, ainda bem!, disse ele, muito estimo encontrá-la aqui; até que enfim já não volto para casa com as mãos a abanar; esta tartaruga sempre vale alguma coisa. 
                  Dito isto, pegou a tartaruga, meteu-a dentro de um saco e o pôs no ombro, e tomou o caminho da casa. 
                   Quando se afastou, os três amigos saíram cada um de seu esconderijo, e encontrando-se, deram pela falta da tartaruga, não lhes sendo difícil imaginar o que lhe tinha acontecido. Então lamentaram-se profundamente, com mil lágrimas e suspiros. Por fim o corvo, interrompendo esta lamentação, disse: 
                - Caros amigos, os nossos suspiros e tristezas de nada servem à tartaruga; devemos, em vez de nos lamentarmos, ver se conseguimos encontrar um meio de lhe salvar a vida. Os sábios da antiguidade diziam que há quatro espécies de gente que só se conhecem nas ocasiões próprias:  Os homens valentes no combate; os homens honestos no negócio; uma esposa nos infortúnios do esposo; e um verdadeiro amigo na necessidade extrema. Vemos, infelizmente, a nossa amiga tartaruga numa situação muito difícil, e por isso devemos, sendo possível, socorrê-la
                   - Bom conselho!, respondeu o rato, e agora que penso no caso, vem-me uma ideia. É mostra-se a cabrinha à vista do caçador, que então, como é de esperar, porá o saco no chão para poder perseguir. 
               - Muito bem pensado!, respondeu a cabrinha. Eu finjo-me coxear a pequena distância dele, o que o levará a seguir-me, e depois tratarei de fazer com que ele se afaste do saco, para dar tempo ao rato de por nossa amiga em liberdade. 
                   Este plano apresentava-se tão bom que todos os aprovaram; e imediatamente a cabrinha começo a coxear a pequena distância do caçador, e a fazer-se tão fraca que ele julgou ser muito fácil apanhá-la; por isso, pondo o saco no chão, começou a correr atrás dela o mais que podia. A cabrinha deixava-o aproximar-se de vez em quando para incentivá-lo a segui-la, e depois tornava a afastar-se, até que, dentro em pouco o tinha levado para muito longe; e então o rato veio roer a corda que atava o saco e soltou a tartaruga, que imediatamente foi se esconder numa matagal muito denso. 
            Por fim o caçador, cansado de perseguir inutilmente a cabrinha, desistiu e voltou para onde deixara o saco. 
                 - Aqui ao menos, disse ele, tenho eu alguma coisa de seguro, esta não é tão veloz como o demônio da cabrinha; e, ainda que fosse, está muito segura para que as pernas possam lhe servir para fugir. 
                  Dizendo isto, dirigiu-se para o saco, e dando pela falta da tartaruga, ficou assombrado e julgou-se numa região espíritos e duendes que protegiam aqueles animais. Portanto, não podia ele ficar pasmado que uma cabrinha tivesse fugido da rede daquela maneira, e depois o provocando aos pulos; e de que, no entretanto, uma tartaruga, um pobre bicho indefeso, se lembrasse de arrebentar a corda dum saco e fugir. Com essas considerações o caçador entrou em pânico de tanto medo do que poderia lhe acontecer e fugiu correndo para casa, como se mil fantasmas e espantalhos o perseguissem.
                        Então os quatro amigos encontraram-se novamente, e desta vez muito felizes por estarem finalmente salvos; renovaram os antigos protestos de amizade, e juraram ficar juntos até à morte. 

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